O que os libertários querem dizer quando defendem que a propriedade é absoluta, não admitindo sua relativização?Inicialmente, temos que explicar o que o libertário entende por propriedade. A propriedade é um fato natural. Temos a propriedade do nosso arbítrio – essa propriedade é inalienável: ainda que um indivíduo queira dispor de seu arbítrio para dá-lo a outro homem isso será fisicamente impossível – o arbítrio não sai de nós. É o que distingue o “eu” do “outro”. Temos, por outro lado, a propriedade dos meios externos. O homem se apropria de elementos da natureza para consumir – se apropria de ar, de água, de alimentos e de espaço. Essa é uma propriedade diferente – é possível que se aliene. Um homem que possui alimentos pode dá-lo a outro para obter vestimentas. Isso é plenamente possível, e não é limitado por qualquer lei da física, da química ou da biologia.
Deste modo a propriedade – tanto a autopropriedade quanto a propriedade externa é um fato natural. Mas serão esses fatos éticos? Em outras palavras, devem esses fatos serem considerados “bons” ou “maus”? O atributo de bom ou mau é olhado pelo libertário como o que é tendente ou não à vida humana em seu potencial. A propriedade possibilita ou nega a vida do homem? Está claro que o arbítrio – a auto propriedade – só existe enquanto vivo um ser. A única forma de se existir a autopropriedade é com a vida. Assim, a única forma de se liquidar a auto propriedade é com a morte de um indivíduo. Com a morte, o indivíduo não mais terá seu arbítrio, deixando de existir enquanto “eu” (pelo menos não nesse mundo dos vivos, ao qual serve a ética). A autopropriedade, portanto, deve ser considerada boa. Nesse caso, não porque ela possibilita a vida – vida e autopropriedade não se dissociam.
E a propriedade externa? A propriedade externa é o fato de o homem se apoderar de elementos da natureza para seu consumo/uso. A propriedade externa nega a vida? Se não é dado ao homem a propriedade externa, o que isso gera? O homem não poderá consumir/usar os elementos da natureza. Se o homem não pode utilizar elementos, ele terá que passar sem eles. Seria isso possível? Sabemos que a sobrevivência depende do uso de elementos externos para a manutenção do organismo. Sem os elementos, o homem perecerá. Negar a propriedade, portanto, é negar a vida. A propriedade externa é o que possibilita a vida do homem.
Propriedade interna e externa são, assim, fatos “bons”. De modo contrário, a mitigação da propriedade interna e externa deverá ser considerada “má”. Surge, daí, o princípio da não iniciação da agressão, que irá nortear todo o direito libertário. A vida não pode ser agredida; assim, a propriedade não pode ser agredida, já que, em seu conceito “interno”, com a vida se confunde, e em seu conceito “externo”, a torna possível. Não se pode, portanto, iniciar a agressão contra vida e propriedade. É nesse sentido que o libertário diz que a propriedade é absoluta – ela é absoluta na medida em que não se admite a iniciação da agressão. Relativizar a propriedade significa, para o libertário, permitir que se inicie a agressão. É nesse sentido que a propriedade não pode ser relativizada.
O jurista que pela primeira vez entram em contato com esse conceito libertário pode chegar a seguinte questão: se os libertários defendem a propriedade absoluta, então não há problemas em exercer a propriedade de tal forma que agrida a propriedade do outro? Essa aparente incoerência é o que supostamente justificaria a “relativização” da propriedade, isso é, a necessidade de se estabelecer regras que limitem a propriedade, regras essas exteriores a ela. No entanto, essa pergunta deriva de um mero acidente semântico acerca do termo “relativização”, que pode ser percebida no seguinte exemplo:
A tem propriedade e B tem propriedade. A propriedade é um direito absoluto, isso é, não se deve iniciar a agressão a uma propriedade. Se a conduta de A, no exercício de sua propriedade, causa um dano não consentido à propriedade de B, houve violação da propriedade de B. Houve iniciação da agressão por parte de A. Há obrigação de que o violador cesse a agressão e repare a propriedade. Demonstra-se, assim, que é o próprio caráter absoluto da propriedade que estabelece o limite. Vejamos a aplicação em um caso concreto: A tem propriedade de um trecho de um rio. B tem propriedade de outro trecho, um pouco mais acima. A propriedade é absoluta no sentido de que A não pode iniciar uma agressão contra a propriedade de B, nem B de A, em nenhuma hipótese. A iniciação é conduta antijurídica, e, se isso ocorre, dá-se a obrigação de A de parar a conduta agressiva e de ressarcir a B o dano causado. B então deliberadamente joga dejetos em sua parte do rio. Ele pode fazer isso? Poder até pode, em termos físicos. Mas, inevitavelmente, em se tratando de um rio, o ato causará um dano à propriedade de B. A iniciou uma agressão. E vai ter que parar, e ressarcir. É importante aqui fazer uma observação. O que é considerado uma agressão? Se A possui uma padaria em um bairro, e B abre um negócio semelhante ao lado, retirando parte da clientela, é possível dizer que B iniciou a agressão contra A? Não. Clientela não pode ser considerado propriedade. A não possui o arbítrio de seus clientes. Coisa diferente se passa no momento que B, na reforma de sua loja, estraga a parede do vizinho. A parede é propriedade.
De modo geral, na teoria do direito mais comum, a situação descrita nos casos acima é considerada como uma “relativização” da propriedade. Ocorre que o libertário não entende tais fatos como exemplos de relativização, mas sim como algo intrínseco ao caráter absoluto da propriedade. A propriedade ser absoluta significa exatamente que não se pode, de forma lícita, iniciar agressão contra ela. Imagine que, ao invés de se considerar a propriedade em termos absolutos, se crie uma regra de uso para o caso descrito acima. Suponha que um legislador reúna certos especialistas e estabeleça a norma segundo a qual até o limite x de dejetos pode ser jogado no rio. E assim B o faz.Note que o legislador está tornando lícita a iniciação da agressão. A continuará tendo sua propriedade degradada, sob a chancela do legislador, que relativizou aquele direito. Para o libertário, portanto, é da essência do conceito de direito de propriedade absoluto a não iniciação da agressão, uma vez que do contrário, não temos um direito no sentido do termo. O direito implica o dever. O direito à propriedade implica o dever de se respeitá-la. Um direito não existe se não for possível defendê-lo.
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